O inigualável tempero do mufete da Chicala

Zona junto à beira-mar concentra vendedores informais organizados em barracas e restaurantes onde se vende do melhor mufete de Luanda, cujo tempero é um segredo guardado a sete chaves

É um Domingo de Maio. De um lado, brisa do mar. De outro, barracas cobertas de chapas e protegidas por gradeamento. O ambiente informal predomina no local. Alguns estabelecimentos comerciais de construção definitiva completam o cenário. No interior, mesas e cadeiras organizadas. Lá fora, arcas, bancadas de peixe, grelhas, fogareiros, carvão, fogo e fumaça. Ao longo da rua de acesso, vendedores esmeram-se para mobilizar clientes. Chamam, igualmente, atenção, jovens sinaleiros como se fossem agentes de Trânsito. Orientam os automobilistas para evitar congestionamento. Observa-se o afinco de trabalhadores para preparar o prato típico: mufete.

A azáfama do local remete, num instante, ao Mercado Municipal da Humpata, na província da Huíla. Mas, estamos na Chicala, onde há gente a chegar e a partir. Quem entra, chega com “água na boca”. Quem sai, parte saciado e feliz.

O mufete da Chicala é isca do turismo, tal como o churrasco serve para o município da Humpata. Alguns vão questionar a analogia. Para perceber, convém ler “Churrasco da Humpata cria água na boca”. A reportagem referente ao município situado 22 quilómetros a Oeste da cidade do Lubango, na província da Huíla, foi publicada na edição nº 13 do jornal regional “Ventos do Sul”, também título da Edições Novembro.

Nos dias de semana, Chicala fica, literalmente, às moscas. Aos fins-de-semana o número de visitantes aumenta. Aos sábados e Domingos atinge o pico. Só a intervenção dos jovens “reguladores” de Trânsito evita o bloqueio total.

É nestes dias que se percebe a dimensão da Chicala como um dos lugares de referência para quem visita Luanda. O mufete coloca o sector da Chicala, situado à esquerda da entrada da Ilha do Cabo, no roteiro turístico obrigatório da cidade de Luanda. Chicala atrai centenas de turistas nacionais e estrangeiros.

São poucas as pessoas que chegam a Luanda sem visitar esta região para degustar o peixe. É o caso do Herlinho Sumo, natural da província de Cabinda, que visita o local pela primeira vez.

O jovem de 25 anos de idade foi confraternizar com três irmãos. “Vim aqui por causa do irmão que regressou de viagem. Acabamos de chegar. Aproveitamos este momento de confraternização entre os irmãos para comer o bom peixe”, conta.

A variedade da oferta de peixe atrapalhou a decisão do finalista do curso de Direito. A indecisão do advogado estagiário retardou o prato.

Por esperar demais, criou água na boca, ao ponto de “atacar” o prato do irmão. Ansioso, tirou uma metade do mufete, enquanto esperava o dele. “Este nem é o meu prato. O meu ainda está a ser confeccionado.  Por enquanto, ataquei o prato dele. Não tinha como esperar mais porque os meus olhos comiam os temperos do prato do meu irmão”, conta, sorridente, enquanto leva uma garfada à boca.

O jovem, que resmunga ao ser avisado pelo irmão para devolver o pedaço, ficou impressionado com o tempero célere usado para preparar o peixe.

Os condimentos do prato fizeram as delícias de Herlinho Sumo. “Apesar de esperar, ainda assim, acho que o tempo de preparo foi rápido. Em casa, as nossas irmãs e mães, sem desprimor, demoram três, quatro ou mesmo um dia para o tempero entranhar no peixe. Mas aqui em menos de 20 minutos está pronto, com aquele gosto singular. Isso é incrível”.

Sumo avalia o mufete como um prato típico de Luanda que faz toda a diferença para visitantes nacionais e estrangeiros. Herlindo Sumo gostou de toda a composição do prato, excepto da banana e da batata doce.

Tomás, o pescador da ilha

A tarefa de atirar a rede ao mar e de pescar exige força e experiência. Aos 50 anos de idade, Sebastião Tomás interpela a equipa de reportagem do Jornal de Angola. 

Solicita entrevista porque entende que ele é um elemento importante da cadeia de produção do mufete. A nossa equipa ligou o microfone (caça palavra) para o pescador falar. “Sou pescador da ilha”, identifica-se rapidamente. “Pesco no alto mar. O nosso peixe é vendido para elas fazerem o mufete. Olha só as minhas mãos. Pergunta a estas senhoras. Não estou a mentir”, mostra os dedos calejados de tanto puxar a rede.

Pai de dez filhos, o pescador diz que sustenta os membros da sua família com os rendimentos obtidos na pesca. “É o meu trabalho. Faço isso com orgulho. Sem a nossa garra não seria possível ter peixe na mesa de ninguém. Enfrentámos ventos, ondas e às vezes calemas no alto mar para que haja mufete”, argumenta.

Lírio vende peixe

O jovem Bartolomeu Augusto, 23 anos, usa o seu apelido “Lírio” para lançar a isca aos clientes que passam pela barraca da sua patroa.  Há cerca de dois anos e alguns meses na Chicala, explica que tem a missão de mostrar as opções de peixe aos clientes.

“Sou recepcionista de clientes. Mostro o peixe a eles. Eles escolhem antes de sentarem-se à mesa. Apresento as qualidades do peixe para todos. Quem gostar senta-se na nossa barraca. Tenho que lhes convencer. Muitos clientes ficam aqui quando se apercebem que o meu nome é igual a um dos peixes mais saborosos”, explica.

Lírio perdeu a conta de quantos clientes já conseguiu “pescar” com esta “isca”, atribuída pela mãe. O jovem considera a publicidade a alma do negócio, por isso, narra todos os detalhes do peixe, dos temperos e das vantagens de comprar na barraca Maria Ngundo.

“Aqui são várias barracas. Quando não consigo convencer o cliente, é um fracasso. Temos que atender bem os clientes para que amanhã voltem mais à nossa barraca”, argumenta o jovem que vive no Zango, onde já trabalhou como padeiro.

“Temos vários peixes à disposição da clientela, o meu peixe chará não falta, porque é o mais procurado”, afirma às gargalhadas o vendedor, que se sente naquele negócio como um peixe dentro da água.

Escalador mais rápido

A mão esquerda pega o rabo do peixe. Apoia numa tábua castanha. A direita segura um cutelo de madeira grande com pontas salientes de pregos. Num movimento de cima para baixo, e vice-versa, Francisco Luís esfrega rápido e delicadamente. Num ritmo impressionante, aplica o escalador de alumínio. Passa duas ou três vezes em cada parte do peixe. À medida que escala assobia.

Nota-se que o homem está motivado. Sentado numa grade de cerveja, ele gosta do que faz. Cauteloso e sem óculos, fecha os olhos constantemente, para se proteger das escamas que se soltam como resultado do atrito. Vira o peixe e repete a execução. É tudo rápido. Muitas escamas ficam espalhadas no chão. Muda de cutelo. Pega um pequeno para finalizar as partes mais apertadas e finas.

A experiência do jovem de 36 anos de idade permite-lhe executar a tarefa com rapidez e eficiência. Em menos de dois minutos. O peixe das pedras já está. Atira para uma bacia. Francisco Luís, funcionário do Bela Mar, conta que aprendeu a escalar peixe na praia da Mabunda. Tem na profissão de escalador de peixe o seu ganha-pão. Explica que a agilidade é resultado de oito anos de experiência, mas também da exigência dos clientes.

Pai de três filhos, sonha ser cozinheiro no futuro. Mas, por enquanto, prefere acreditar que é “um dos escaladores de peixe mais rápidos da Chicala”.

“Aqui temos que ser rápidos. Conforme vê há enchente lá no restaurante. Quando nos trazem o peixe, temos tempo para concluir. Quanto mais rápido, melhor. Mas o peixe deve estar limpo e pronto para ir ao tempero”, explica.

Francisco e outros escaladores de peixe da Chicala dão o máximo para sustentar a família. Disse que a transição do trabalho informal para o emprego numa empresa privada foi a melhor coisa, porque, no final do dia, “leva o pão para as crianças”.

Segredo do sabor do mufete

A história de vida de Maria Laurinda Augusto se confunde com a existência do mercado de peixe da Chicala. Grelha, carvão, temperos, bacias de peixe e fogo são os principais instrumentos de trabalho de Maria Augusto. Ela considera-se especialista na confecção de mufete. Há mais de 10 anos que ela  prepara o prato típico bastante apreciado por turistas nacionais e estrangeiros. A senhora, na casa dos 50 anos, fica mais na cozinha, por isso muitos visitantes não a conhecem. É atrás do balcão onde acontece o seu trabalho.  “Aqui não falta peixe”, conta, agitada, a preparar o peixe do próximo cliente. Uma das 20 trabalhadoras de uma das barracas, Maria Augusto garante que sustenta os seus filhos com os ganhos da Chicala. “Aqui sai dinheiro para a escola dos miúdos e a renda de casa. Sobrevivemos mesmo disso”, disse, antes de “matar” a curiosidade dos clientes sobre o segredo do sabor do mufete.

“Se tem segredo do mufete é o peixe fresco, que sai do mar para o prato do cliente. Peixe importado é difícil. O tempero só complementa”, afirma sem entrar em detalhes sobre a composição do tempero usado para preparar o bacalhau acabado de sair da grelha.

Elena Cassinda, natural de Benguela, atiça o fogo na cozinha de um dos restaurantes. Ela controla quatro grelhas ao mesmo tempo. Aos fins-de-semana acorda cedo para chegar também cedo ao serviço. A agilidade com que lida com a grelha mostra a sua experiência de seis anos.

Ela tem a missão de assar o peixe até ao ponto. “Não pode queimar. Os clientes estão à espera. Vieram para comer peixe bem passado e não queimado”, explica ao justificar tanta concentração no revirar da grelha. “Tenho filhos por sustentar. O trabalho é mesmo este”, explica em poucas palavras.

“Bolo do mar” no aniversário

Afrodite Kassua completou este mês 30 anos de vida. Para assinalar a data, foi à Chicala, em companhia da família, para comer peixe. O mufete de carapau substituiu o bolo de aniversário de Afrodite Kassua. Ela saiu satisfeita por comemorar o aniversário num ambiente de descontração.  “Este é um dos melhores lugares. Gosto. Preferi vir cá comemorar o meu aniversário”, declarou, considerando divertida e engraçada a sugestão da família para realizar uma festa de forma diferente, cortando peixe ao invés de bolo.

“Foi marcante. Com certeza que este aniversário  fica para a história porque gastámos menos, mas todos ficámos saciados. Estamos a sair satisfeitos”, garantiu.

Júlia Jorge, 21 anos, acompanhou a irmã Afrodite Kassua para festejar na Chicala. A estudante do curso de Contabilidade também gostou do almoço em família, sobretudo, por ser uma data importante na vida da irmã mais velha. “Por vezes venho aqui com os amigos. Mas hoje foi diferente. Estou aqui para almoçar com a família. Hoje é um dia especial porque viemos celebrar. Não restou espaço”, afirmou, referindo que comeu “um peixe corvina completo”, prato composto também por feijão de óleo de palma, batata doce, banana pão e farinha musseque.

Júlia Jorge chegou ansiosa e com água a jorrar do céu da boca. Mas à saída da Chicala estava saciada e sem espaço para comer mais.  “É bom comer o peixe da Chicala.  Comi um peixe inteiro”, afirma, enquanto passa a mão na barriga repleta.

Bacalhau nas bodas de algodão

Paulo João e Joana Chigando estão casados há dois anos. Foram à Chicala para assinalar dois anos de mútua convivência. O casal, que frequenta a zona conhecida pelo mufete, optou por bacalhau, ao contrário de outros dias em que a preferência tem recaído para taco-taco, carapau, corvina, lírio ou outro tipo de peixe. “Este é um local bom para passar a tarde e comer do bom mufete. Mas hoje especificamente viemos almoçar fora porque é o nosso aniversário de casamento. Como é o sítio que gostamos, escolhemos para recordar este dia”, explica o marido, com alegria estampada no rosto.

Para assinalar as bodas de algodão, o casal optou pelo peixe bacalhau. O esposo justifica a escolha. “Como é um dia especial para nós, vamos degustar este peixe também especial. O aniversário de casamento vai ser celebrado assim”, afirma o marido, que, ao lado da sua querida, espera com elevada expectativa.

“Estamos à espera. Ainda não passou o tempo que nos deram, mas já estamos com a boca molhada e com muita fome. Só estamos a sentir o aroma dos temperos. Não vejo a hora de dar as primeiras garfadas no bacalhau”, acrescenta a esposa.

Joana Chigando aprova o modo de confecção do mufete. Como mulher habituada  à culinária diz admirar o “toque mágico” do mufete da Chicala.  “Nunca me arrependi. Em todas as casas onde já passei sempre fomos bem servidos. Os temperos são top. Sinceramente, não sei quais são os temperos que elas têm. Não sei como fazem para em tão pouco tempo ter esta delícia que convida a voltar”.

Impacto no turismo

Paulo João e Joana Chigando consideram a zona um ponto turístico por causa da gastronomia. O casal entende que a Chicala “só carece de ordenamento e de parque de estacionamento”.

O esposo explica que teve dificuldade para estacionar a viatura. Apela às autoridades para projectar um estacionamento condigno “porque isso vai reforçar a segurança pública de modo a atrair mais turistas”.

O ambiente familiar na Chicala ressalta à vista de Joana Chigando. Ela sabe que a maioria das barracas estão associadas a famílias residentes. “Não há muito rigor. Há gente de toda a parte por aqui. Este ambiente familiar é acolhedor. Como diz o meu esposo, requerer apenas organização de estacionamento. Mas mesmo assim é chamativo”, diz a senhora que acaba de receber o seu mufete de bacalhau.

O casal é unânime em convidar os cidadãos nacionais e estrangeiros a visitar a Chicala. 

A contabilista Júlia sublinha que o mufete da Chicala  faz parte da gastronomia da cidade de Luanda, sendo um detalhe importante a considerar na promoção do turismo. “Agora encontro-me cá e está a ser proveitoso. Provei e gostei. Chegar à Ilha de Luanda para saborear este peixe é uma óptima sensação. Se para os de Luanda é uma maravilha, imagino para quem nos visita pela primeira vez”, conclui.

Para o futuro advogado, o comércio de mufete ajuda na mobilização de pessoas para visitar a Chicala, senão mesmo a Ilha de Luanda em geral. “O mufete, para além de ser prato típico, parece fácil de preparar. Conforme a composição, tem gosto. Não tem como as pessoas não se sentirem atraídas pela comida”.

Chicala é um sector da Ilha de Luanda. O coordenador da Comissão de Moradores  explica que as autoridades controlam 28 vendedores informais de mufete e seis estabelecimento comerciais formais.

Saturnino Sebastião diz que os informais pagam uma taxa semanal de mil kwanzas, cobrada pelo Distrito da Ingombota. Lembra que o mercado existe há mais de 30 anos. “Eu nasci aqui. Tenho 35 anos de idade e já encontrei gente a vender mufete aqui”, afirma.

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